quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uma flor para os cubanos

Se eu fosse cubano, daria um jeito de fugir do país. E para nunca mais voltar. Sairia como pugilista, médico, jornalista, náufrago em direção a Miami, mas em Cuba não ficaria. Além de todos problemas endógenos, os vizinhos ianques lhes impõem um cruel e assassino embargo econômico, como de fato não se vê similar no Ocidente. É ruim viver lá. E sem um motivo convincente aos olhos do governo insano da ilha, é proibido viajar para fora dela.
 
Estive em dois lugares em Cuba. Em Varadero, uma chamada "cidade-resorte" no país caribenho, e também estive em Havana, a capital. Em Varadero deu tudo certo, hotel com boa estrutura e paisagem de Caribe, nada a reclamar. Já na capital, a péssima infra-estrutura, o comércio inexistente e o sucateamento generalizado são dignos de absoluta piedade e baixo-astral. Consegui mesmo assim me divertir com o exotismo de Havana, boa histórias de lá estão na memória. A incrível cultura, e a envolvente elegância e boa educação daquele povo impressionam.
 
Mas cubanos sabem que vivem mal. Funcionários do hotel em Varadero davam a dica. Um deles, jardineiro, lamentava profundamente suas dificuldades comigo em bate-papos nos intervalos de execução de sua arte, enquanto eu ficava na sacada do apartamento contemplando o mar. Em nome de nossa novíssima amizade atirei em suas mãos o boné que usava. Ele vestiu o boné instantaneamente, e em retribuição roubou uma dentre as centenas de flores que cuidava, por algum motivo a tocou em sua cabeça, e depois me deu. Fomos bons amigos, ainda que por alguns minutos.
 
Nunca soube manter a amizade com o jardineiro. Há 17 anos não havia email ou celular. Mas se houvesse, ele não teria acesso (ninguém tem nada minimamente evoluído do país). Tive então que esperar até o Ceará me ajudar em agosto de 2013. O estado foi um dos pontos de desembarque dos profissionais do programa "Mais Médicos" do governo brasileiro iniciado no mesmo ano. Um primeiro grupo de médicos desembarcou na capital do estado, e foi recepcionado por um bando de médicos sem qualquer noção do ridículo, mas talvez com uma boa noção de xenofobia, que se deu ao trabalho de ir até o aeroporto injuriar os colegas estrangeiros com palavras preconceituosas. Um dos médicos cubanos, Dr. Delgado, levou descompostura aos berros de uma patricinha colega brasileira, que tinha aliás a mesma idade de sua filha. Olimpicamente disse após a gigantesca falta de respeito e educação algo como "não entendi a hostilidade, estou apenas indo para onde eles não querem ir".
 
Dias depois uma segunda turma de médicos cubanos desembarcou no mesmo aeroporto, e movimentos sociais tiveram a tirada de levar flores, indenizando assim um pouco a péssima primeira impressão. Queria ter podido estar lá junto, relembrando o regalo que havia ganho 17 anos antes.
 
Pelo programa, nosso governo pagaria R$10 mil para cada médico que topasse vir trabalhar em rincões sem cobertura médica no país. Lugares considerados inóspitos não atraem médicos tupiniquins. Apesar de prefeituras e governos oferecerem bons salários, as vagas não são preenchidas. Tem que respeitar a decisão soberana dos médicos brasileiros de não quererem trabalhar em certos lugares absolutamente problemáticos, sem dúvida. Mas o povo de tais praças sempre amargou desespero e morte - e afinal, o que há de pior que não se ter uma mínima assistência médica? Talvez apenas a falta de saneamento básico, de água e canal de escoar dejetos, seja mais indigno. Mas fato é que médicos brasileiros nunca toparam certos lugares, e por salário até menor traz-se agora gente de fora. Dentre eles muitos cubanos, ótimos médicos que tradicionalmente são.
 
Se certa região no Brasil está desguarnecida, e se os caras que vem de fora são bons, qual o problema? Geralmente, os mais ricos são contra o Mais Médicos, e os mais pobres a favor (talvez porque literalmente já sentiram na carne os efeitos da carestia no campo da saúde, e em tantos outros).
 
Soube-se que o governo patético dos irmãos Castro retém entre 90% e 95% do pagamento do governo brasileiro. Ou seja, resta para os médicos cubanos algo entre R$500 e R$1.000, uma vergonha. Três deles já pediram asilo estrangeiro. Estão certos. Uns 30 desistiram do programa nessas condições e voltaram a Cuba. Desistir e tentar fazer outra coisa tudo bem, mas voltar para Cuba só se justificaria por questões de família mesmo, sei lá...
 
Aos cubanos, sul-americanos e europeus que aderiram o programa, deveríamos preferir dar flores e encorajamento na ajuda aos nossos patrícios necessitados, a ovos e xingamentos. Precisamos todos, médicos e leigos, colocar espelho nos olhos, checar a consciência, e decidir de que lado estamos.

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